sábado, 5 de março de 2011

A FILOSOFIA SAI PARA AS RUAS


Nos bares, livrarias e empresas, está de volta o hábito da reflexão
 Não é uma invasão brusca, mas uma infiltração mansa e delicada. Com a elegância dos mais sutis produtos do intelecto humano, a filosofia se espalha sobre os espíritos materialistas dos nossos tempos. Sem cerimônia, senta à mesa dos bares, intromete-se nas conversas, ganha as ruas. Deixa para trás os frios muros da academia. Volta a ser ensinada nas escolas – as mesmas que a tinham expulsado anos atrás, atendendo à cruel sentença de que “filosofia não serve para nada...” Como se o valor de algo estivesse intrinsecamente condicionado à sua utilidade prática – o que, de resto, já é uma questão filosófica. Chega até a ganhar a mente dos empresários, que vêem na formação filosófica uma virtude inestimável para o desempenho de certas funções administrativas. Por fim, reluz nas vitrinas das livrarias, na forma de obras de popularização de excelente qualidade.

 O grande retorno da filosofia começou em Paris – claro -, em 1992, um pouco por acaso. Mais exatamente no Café des Phares, onde um certo professor de filosofia chamado Marc Sautet costumava encontrar seus amigos para alentados bate-papos onde não raro eram citados desde os gregos Sócrates, Platão e Aristóteles, até contemporâneos como Sartre, Heidegger e Merleau-Ponty. Aos poucos, a excelência da conversa passou, primeiro, a atrair a atenção dos circunstantes, depois, sua animada participação. Não demorou e toda a capital francesa estava tomada pela mais nova e excitante moda intelectual, o Café Filosófico – ou apenas Café Filô. Outros países europeus também logo entraram na dança.

Tempos de penúria
 Entre nós, a idéia chegou pelas mãos da historiadora e jornalista Sônia Goldfeder. Em agosto de 1997 ela criou, com a devida autorização de Sautet, no mezanino da Livraria Cultura, em São Paulo, o primeiro café filosófico brasileiro, comandado pela professora Olgária Matos, da Universidade de São Paulo. A escolha não poderia ter sido mais feliz. Olgária, além de brilhante pensadora, sempre defendeu com entusiasmo a popularização desse tipo de debate, que teve sua origem na Atenas do século 5 antes de Cristo. Fiel ao estilo de Sócrates, que andava pelas ruas a propor questões filosóficas às pessoas, Olgária deu início ao primeiro encontro perguntando o essencial para aquela situação: “Por que a filosofia em tempos de penúria?” Ou seja, por que, afinal, estamos hoje aqui? Esta é, na verdade, também a pergunta para esta triunfante volta da filosofia nesses tempos de penúria humanística.

 Poucas vezes se verá uma forma mais estimulante de começar a fazer filosofia como aquela proposta por Olgária. Não tardou para que todos na sala mergulhassem de cabeça na deliciosa aventura de filosofar. E a cada questão levantada, Olgária fazia questão de discorrer sem nunca fechar o discurso, porque, afinal, filosofar é fazer perguntas. Responde-las, nem tanto. Ou, como prefere a professora, em certo sentido “a resposta é a traição da questão”. Ainda como Sócrates, que foi condenado à morte, entre outras acusações, por seduzir os jovens atenienses, Olgária encantou a platéia. Não por coincidência, no andar inferior do debate, os donos da livraria comemoravam um insólito sucesso de vendas: era o delicioso O Mundo de Sofia, do escritor norueguês Jostein Gaarder, que teimava em manter-se na primeira colocação dos mais vendidos, categoria ficção. Como um Monteiro Lobato nórdico, Gaarder conseguiu a proeza de fazer da austera problemática filosófica um quitute adocicado para o paladar delicado dos jovens. Ele provou que não há veículo mais adequado para tornar um tema palatável do que uma história bem contada.

Criança curiosa
 Gaarder, o filósofo das crianças, diria mais tarde que não vê nenhuma mágica nisso. Para ele, basta que as pessoas continuem a fazer perguntas para fazer o seu cérebro funcionar saudavelmente. “O ser humano nasce curioso e, ainda criança, já faz perguntas”, observa. “Depois, deixa esse hábito morrer, e tenta suprir essa falta estudando filosofia numa faculdade. Não é preciso nada disso, basta continuar perguntando.” Perguntar é a mola do pensamento. Mas não se trata de qualquer pensamento, e sim do pensamento crítico, aquele que pergunta pelo valor das coisas, propõe o autor. “Uma sociedade de jovens acríticos é algo perigoso e, infelizmente, essa é uma realidade em franca expansão”, adverte Gaarder.

Espírito crítico
 A ânsia de perguntar (ou pensar criticamente) está em todos os seres humanos. E, por alguma razão especial, essa comichão resolveu aflorar neste final de século. E de milênio. Por quê? Entre os freqüentadores do Café Filô de Sônia e Olgária – e dezenas de outros que pipocam agora em outras cidades do Brasil – é possível perceber claramente essa inquietação. Anderson de Almeida, um pintor de placas de 25 anos, de São Paulo, é um desses espíritos irrequietos.

 Ele começou a ir ao café porque sentiu que lá poderia ouvir e discutir as questões que mais o afligiam. Que questões são essas? “Moro na periferia, num bairro violento”, lembra. “Quando era garoto, logo pela manhã, no caminho da escola, via corpos de pessoas mortas nos tiroteios da noite anterior e me perguntava: “Por que tudo isso acontece?” Comecei a procurar respostas nos livros de filosofia, e a partir daí não parei mais de pensar.”

 Engana-se, porém, quem pensa que fazer filosofia resume-se ao simples perguntar, ao mero pensar. Não se trata do pensar ingênuo, como a tola conclusão do burguês fidalgo, da clássica comédia de Molière, que por falar desde pequenino achava que “fazia prosa sem o saber”. A pergunta filosófica quer saber o que está por detrás das coisas, oculto sob a capa do óbvio. Ou, como diz Olgária, não se trata de perguntar que horas são, mas o que é o tempo. Nem querer saber onde está esse livro, mas o que é o espaço.

Arma de especulação
 O filosofar tampouco condiz com a falsa imagem do pensador recolhido no silêncio de sua torre de marfim, frio e distante contemplador da barbárie de seu tempo. Ao contrário, a volta da filosofia, nestes tempos bicudos, tem tudo a ver com a ação. O médico homeopata pernambucano Mozart Cabral, outro assíduo participante dos debates do café, sabe bem do que se trata. O saber adquirido em sua profissão não é suficiente para explicar tudo que o inquieta, admite. “Há certas perguntas que a ciência não responde e para as quais a religião não satisfaz. A filosofia é uma poderosa arma de especulação, uma forma de enfrentar um mundo que supervaloriza o ter em detrimento do ser. Apesar de toda a tecnologia, as pessoas não são felizes. É bom ouvir a Olgária levando idéias complexas, de forma simples, para as pessoas comuns. A filosofia estava restrita à universidade, é bom vê-la sendo derramada pelas ruas.”

 Pelas ruas, cafés, livrarias – mas também pelos escritórios das grandes empresas. Hoje, não são poucas as companhias, de todos os tipos, que insistem em ter, no seu quadro de funcionários, pessoas com formação filosófica. E não se trata apenas de aproveitar delas essa virtude humanística, mas também da condição que os estudiosos detêm de indicar com clareza qual o caminho mais conveniente a tomar – do ponto de vista ético e político. Nesse ponto, a filosofia se torna uma aliada do empresário moderno, que descobriu – finalmente – que de nada vale o lucro a qualquer custo, se não se salvaguardam os valores humanos.

 Esta pode ser uma descoberta nova, mas não é de todo surpreendente, pelo menos para dois professores de filosofia: Paulo Roberto Monteiro de Araújo, diretor da faculdade de filosofia da Universidade Mackenzie, de São Paulo, e Maria Cecília Coutinho de Arruda, da Fundação Getúlio Vargas. Para Paulo Roberto, estão terminados os dias da filosofia como prática confinada na academia. “Isso terminou no século 18”, anuncia. “Hoje, Hegel tem que ser compreendido pelas crianças. A filosofia está no cotidiano, no óbvio, cabe-nos compreender isso.”

Criados para o bem
 Para ele, a filosofia cabe como uma luva nos dias de hoje, como uma forma de fundamentar e justificar a existência das pessoas e dar qualidade às relações pessoais, sociais e políticas. “A filosofia está de volta como uma forma de melhorar a vida das pessoas. Ela nos faz refletir, exercitar nossa consciência crítica, apresenta-se na forma de reflexão ética e política.” Foi para cumprir esse papel, por sinal, que o Mackenzie criou, no ano passado, seu curso de filosofia, voltado para a formação de profissionais para atuar na área que Paulo Eduardo chama de ética aplicada.

 Maria Cecília atua no mesmo campo. Ela é professora de ética nas empresas e ética no marketing, duas áreas onde a filosofia começa a falar alto. E aqui, onde se poderia supor que os empresários exerceriam algum tipo de resistência, Cecília conta que acontece exatamente o oposto. “Eu comecei a trabalhar com ética empresarial quando descobri, estarrecida, que o desenvolvimento das técnicas e da tecnologia levaram a abusos graves. Casos de manipulação da propaganda – inclusive com o uso de recursos subliminares – se sucediam criminosamente. Sem falar em assédio sexual e todo tipo de corrupção. Era preciso restaurar o respeito aos valores mais comezinhos, pois de nada vale o desenvolvimento científico e tecnológico se não houver uma forte preocupação com o ser humano. Já não faz sentido a filosofia do lucro a qualquer custo.”

Os empresários se convenceram facilmente disso. Tanto que a presença deles em congressos, cursos, seminários e palestras, organizados pela professora, vem superando todas as expectativas. É cada vez mais comum, também, Cecília ser procurada para ministrar cursos de ética dentro das empresas. A razão disso? Cecília responde candidamente: “Eu acredito que as pessoas tendem naturalmente para o bem. Somos criados para o bem. O que até hoje era visto como o bem supremo – a riqueza material, o dinheiro, o lucro, independente da forma de consegui-lo – já não mais satisfaz. As pessoas estão se dando conta de que mais importante é ser feliz.”

 Mais que tudo, porém, a volta da filosofia se explica, segundo Olgária Matos, porque ela “representa hoje a possibilidade efetiva da interdisciplinaridade, numa sociedade altamente especializada. Como dizia Hegel, a filosofia é a apreensão de uma época em pensamento”.

A crise do amor
 Este é um momento, diz a professora, no qual o pensamento tecnocrático é hegemônico, em que as determinações econômicas se impõem como única maneira de pensar e de ser. “Todas as necessidades do homem se reduzem a bens materiais. Vivemos um mundo de intolerância, de fragmentação política, de fundamentalismos religiosos e ódios étnicos. A filosofia chega bem a tempo, para evocar outros valores, sonhar outros sonhos, inventar outras razões para os homens poderem estar juntos. A palavra filosofia guarda em sua etimologia (do grego philo, amor, e Sophia, sabedoria) a memória de seu significado originário. Se a filosofia é, antes de tudo, o amor pelo conhecimento, podemos concluir que a atual crise da cultura é uma crise da capacidade de amar.


(Artigo publicado na revista “Galileu” de setembro de 1999, págs. 46-51)

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